GELO, ESPELHOS E CINEMA

SOBRE LA TOUR DE GLACE, DE LUCILE HADŽIHALILOVIĆ

NO SEU NOVO FILME, LUCILE HADŽIHALILOVIĆ NÃO ADAPTA A RAINHA DA NEVE; INSTALA-SE DENTRO DOS SEUS MECANISMOS. LA TOUR DE GLACE NÃO É UMA MERA ADAPTAÇÃO LITERÁRIA MODERNA DE ANDERSEN – É A OBSERVAÇÃO CLÍNICA DE COMO O CONTO CONTINUA A FUNCIONAR, HOJE, ATRAVÉS DE OUTRA MÁQUINA DE ESPELHOS: O CINEMA.

PORQUE EM ANDERSEN O HORROR NUNCA ESTÁ NA FIGURA DA RAINHA DA NEVE, MAS NO OLHO E NO ESPÍRITO. O DIABO NÃO INVENTA MONSTROS: INVENTA UM ESPELHO. UM DISPOSITIVO ÓTICO QUE NÃO MENTE, APENAS ACENTUA. TUDO O QUE É BELO SE MANTÉM; TUDO O QUE É FEIO SE TORNA INSUPORTÁVEL. ASSIM, NO CONTO APRENDEMOS QUE O MAL NÃO ENTRA NO MUNDO COMO VIOLÊNCIA – MAS SIM COMO REFLEXO.

HADŽIHALILOVIĆ PERCEBE ISTO, E APRESENTA-NOS UMA TESE CRUEL: O CINEMA É TAMBÉM HERDEIRO DIRETO DESSE ESPELHO DO DIABO DE ANDERSEN.

EM LA TOUR DE GLACE, JEANNE – ADOLESCENTE ÓRFÃ, VAZIA DE HISTÓRIA, E, PORTANTO, FAMINTA DE IMAGENS CRISTAL – ATRAVESSA LITERALMENTE O ESPELHO AO ENTRAR, INADVERTIDAMENTE, NUM ESTÚDIO DE FILMAGENS. A PARTIR DAÍ, TUDO O QUE VIVE PASSA A EXISTIR EM DUPLICADO: O MUNDO E A SUA ENCENAÇÃO; O DESEJO E A SUA PROJEÇÃO; A RAINHA DA NEVE E A ATRIZ QUE A INTERPRETA. A TORRE DE GELO NÃO É APENAS CENÁRIO: É O SET, COM OS SEUS REFLETORES, CRISTAIS, SUPERFÍCIES POLIDAS E PROMESSAS DE IMORTALIDADE.

CHRISTINE (MARION COTILLARD) REPRESENTA A RAINHA DA NEVE. MELHOR, É POSSUÍDA PELA RAINHA DA NEVE ENQUANTO IMAGEM CINEMATOGRÁFICA: PERFEITA, CONGELADA, INTOCÁVEL, CONSTRUÍDA PARA DURAR MAIS DO QUE A CARNE QUE A SUSTENTA. COMO AS ESTRELAS DA HOLLYWOOD CLÁSSICA – MULHERES OBRIGADAS A CRISTALIZAR-SE NUMA POSE ETERNA PARA QUE O MUNDO PUDESSE ADORÁ-LAS SEM RISCO DE INTIMIDADE. A ATRIZ NÃO VIVE: É PRESERVADA. A PERSONAGEM-VILÃO DESTE CONTO REVELA-SE ENTÃO TAMBÉM UMA AMEAÇA PARA A ATRIZ, NA SUA TENTATIVA DE A INTERPRETAR. SÓ PODE HAVER UM REI NESTA SELVA.

JEANNE (CLARA PACINI) ENTENDE ISTO INSTINTIVAMENTE. O SEU FASCÍNIO NÃO É APENAS ERÓTICO, NEM APENAS FILIAL. É ONTOLÓGICO. ELA OLHA PARA CHRISTINE COMO KAY OLHA PARA OS FLOCOS DE NEVE: COM A DEVOÇÃO DE QUEM ACREDITA QUE ALI EXISTE UMA ORDEM SECRETA, UM SENTIDO SUPERIOR, UMA FORMA DE ESCAPAR AO CAOS DO ABANDONO. O CINEMA PROMETE-LHE EXATAMENTE O QUE A RAINHA DA NEVE PROMETIA A KAY: DOMÍNIO, PERTENÇA, ETERNIDADE E SENTIDO.

MAS O PREÇO A PAGAR É O MESMO.

TAL COMO O ESPELHO DO DIABO, O CINEMA – QUANDO ABSOLUTIZADO – NÃO CRIA RELAÇÃO, CRIA DISTÂNCIA. AMPLIFICA ATRITOS, REVELA FERIDAS, TRANSFORMA A DOR EM TEXTURA. HADŽIHALILOVIĆ FILMA ESTE PROCESSO SEM ROMANTISMO: A RODAGEM É UM RITUAL FRIO, MECÂNICO, DESPROVIDO DE ALEGRIA. A MAGIA NÃO ESTÁ NO FAZER; ESTÁ NO EFEITO. O SET É UMA FÁBRICA DE GELO. A FÁBRICA QUE DEU NÃO SÓ O REINO À RAINHA, MAS O SEU PRÓPRIO CORPO DO LADO DE CÁ DO ESPELHO, RESULTANDO NO SENTIMENTO DE REPULTA DE CHRISTINE.

JEANNE, COMO KAY, COMEÇA A PARECER HABITAR ESTE MUNDO DE GELO DE DIVERSOS MODOS. ASSUMINDO OUTRO NOME, CLARO – BIANCA – PORQUE O ESPELHO EXIGE SEMPRE UM DUPLO. MAS NO FILME PROJETA-SE NA IMAGEM DA ATRIZ COMO GERDA NUNCA SE PROJETARIA NA RAINHA DA NEVE. E AQUI AS RELAÇÕES ENTRE TODAS ESTAS PERSONAGENS COMPLICA-SE E GANHA A SUA PRÓPRIA VOZ, SEMPRE COM UM PISCAR DE OLHOS AO CONTO ORIGINAL. JEANNE NÃO QUER SALVAR CHRISTINE; QUER TORNAR-SE DIGNA DO SEU FRIO QUE PERCEBE COMO SENDO SEU, E NÃO DA PERSONAGEM QUE INTERPRETA. QUER APRENDER A EXISTIR SEM PEDIR CALOR. NESSE SENTIDO, PELO MENOS UMA CONCLUSÃO SIMBIÓTICA DAS PERSONAGENS DE ANDERSEN NO FILME DE HADŽIHALILOVIĆ É CLARA: OS DOIS NOMES DA PERSONAGEM – JEANNE E BIANCA – BAPTIZAM A DUALIDADE QUE EXISTE NA OBRA DE ANDERSEN EM KAY E GERDA, MAS METAMÓRFICOS NUM SÓ CORPO NESTE FILME, NESTA ESPÉCIE DE MISE EN ABYME METACINEMATOGRÁFICO.

É AQUI QUE ESTE ASPETO METACINEMATROGRÁFICO DO FILME SE EVIDENCIA. LA TOUR DE GLACE NÃO ACUSA O CINEMA DE MENTIR; ACUSA-O DE EDUCAR O OLHAR PARA A DEFORMAÇÃO. TAL COMO O ESPELHO DO DIABO DE ANDERSEN, A CÂMARA ENFATIZA, SELECIONA, ILUMINA O QUE CONVÉM. FAZ DO SOFRIMENTO ALGO “INTERESSANTE”. UMA FERRAMENTA QUE EXISTE TAMBÉM PARA A INESTÉTICA, QUE ACABA POR ABRIR UMA CRISE PROFUNDA NA PERSONAGEM DE CRISTINA QUANDO SE ENCARA NO GRANDE ECRÃ COMO RAINHA DA NEVE.

E, COMO NO CONTO, O PERIGO NÃO ESTÁ NA VILANIA CONSCIENTE. CHRISTINE NÃO É UMA PREDADORA. ELA É UMA VÍTIMA, SEM SABER, DO SEU EGOCENTRISMO – COMO O PRÓPRIO DISPOSITIVO CINEMATOGRÁFICO TAMBÉM O É.

A DIFERENÇA CRUCIAL – E AQUI HADŽIHALILOVIĆ SEPARA-SE DE ANDERSEN – É A TAL UNIÃO EM JEANNE/BIANCA DE GERDA/KAY. A LIBERTAÇÃO, ASSIM, SE EXISTIR, SERÁ SOLITÁRIA, AMBÍGUA, INCOMPLETA. JEANNE TERÁ DE APRENDER, SOZINHA, AQUILO QUE GERDA JÁ SABIA DESDE O INÍCIO: QUE A IMAGEM NUNCA DEVOLVE O TOQUE, AO CONTRÁRIO DO GELO QUE SEDE AO CALOR HUMANO.

SE EM ANDERSEN O ESPELHO É QUEBRADO PELO AMOR, EM LA TOUR DE GLACE O ESPELHO RESISTE. O CINEMA NÃO SE ESTILHAÇA; O QUE ESTE FILME NOS REVELA É A SUA NATUREZA FRATURANTE. HADŽIHALILOVIĆ NÃO OFERECE REDENÇÃO – OFERECE LUCIDEZ. MOSTRA-NOS QUE O CINEMA, COMO O ESPELHO DO DIABO, É UMA MÁQUINA EXTRAORDINÁRIA DE FASCÍNIO, MAS TAMBÉM UM APARELHO DE ARREFECIMENTO DO MUNDO. SERÁ ESSA CLANDESTINA CAUSA DA NOSSA ATRAÇÃO PELA RAINHA DA NEVE?

TALVEZ SEJA POR ISSO QUE O FILME RECUSA FINAIS QUENTES. PORQUE ADMITIR CONFORTO SERIA MENTIR. PORQUE HOJE JÁ NÃO ACREDITAMOS QUE O GELO DERRETA FACILMENTE – E NÃO DESCARTEMOS A BELEZA MAGNÉTICA DO SEU PERMAFROST. PORQUE APRENDEMOS, COM ANDERSEN E COM O CINEMA, QUE O VERDADEIRO PERIGO NÃO É A CRUELDADE – É A BELEZA SEM CORAÇÃO.

APÓS ESTE BELO FILME DE LUCILE HADŽIHALILOVIĆ PODEMOS CONTINUAR A ACREDITAR QUE, PARA BEM OU PARA MAL, O ESPELHO CONTINUA INTEIRO. E NÓS CONTINUAMOS A OLHAR PARA ELE.

Manuel Oliveira