É JULIETTE, SR. PARK

SOBRE A CRIADA, DE PARK CHAN-WOOK (NA VERDADE É MAIS SOBRE JUSTINE E JULIETTE, DE DE SADE, MAS PRONTO, TEMOS SUBTÍTULO)

A CRIADA É DAQUELES FILMES QUE NOS AGARRAM PELOS GUIZOS — QUEM VIU O FILME SABE DO QUE FALO — NO MODO COMO PARK CHAN-WOOK PEGA NA MATÉRIA INFLAMÁVEL DO ROMANCE QUE O INSPIROU E LHE ACENDE UM FÓSFORO SADIANO. 

HIDEKO, À PRIMEIRA VISTA, É O CISNE DE RENDAS FEITO PARA ORNAMENTO — A JUSTINE PERPÉTUA, A DONZELA MARTIRIZADA QUE SÓ EXISTE PARA O MUNDO A VIOLAR. KOUSUKE, O TIO-COLECIONADOR, ENSINOU-A A SER OS LIVROS MAIS PRECIOSOS DA SUA BIBLIOTECA, OS VOLUMES QUE SE LÊEM EM VOZ ALTA PARA QUE A INOCÊNCIA SE TORNE PERFORMANCE E A PERFORMANCE, OBEDIÊNCIA. PARK FILMA ESTA VIOLAÇÃO RITUAL COM, FRANCAMENTE, UMA MINÚCIA QUE DEIXA A DESEJAR: RACCORDS PREVISÍVEIS, MOVIMENTOS EXAGERADOS DE CÂMARA, PERFORMANCES TOLAS (COM UMA NOTÁVEL EXCEÇÃO CHAMADA KIM MIN-HEE). MAS AVANCEMOS. HIDEKO, À FORÇA DE SER JUSTINE, VAI-SE DESFAZENDO COMO PERSONAGEM E TORNANDO-SE COISA — OBJETO DE COLEÇÃO, MÁQUINA DE LER, ESTÁTUA VIVA.

MAS AQUI ENTRA SOOK-HEE, O ERRO DE CÁLCULO NO QUE SE PODERIA PREVER NA TRAMA DO FILME. A LADRA QUE NÃO SABE LER NEM ESCREVER, MAS QUE SABE MAIS DA MATÉRIA HUMANA DO QUE TODOS OS BIBLIÓFILOS DA CAVE. E É A PARTIR DA PRESENÇA CRUA, ANIMAL, DESSA RAPARIGA DE CLASSE OPOSTA À QUE ESTÁ HABITUADA, QUE HIDEKO COMEÇA A TROCAR DE PELE. A RELAÇÃO ENTRE AS DUAS NÃO É MORAL, NÃO É POLÍTICA, NÃO É NEM SEXUAL NO SENTIDO QUE OS HOMENS DO FILME PERCEBEM SEXUALIDADE: É ENCONTRO. É UM ANTES DE TUDO. AS DUAS MULHERES DESCOBREM, NUM RITMO QUE NUNCA É TRIUNFALISTA, QUE A INTIMIDADE PODE SER UMA FORMA DE ANARQUIA E LIBERTAÇÃO.

E É ASSIM QUE A JUSTINE COMEÇA A MURCHAR E A JULIETTE — A VERDADEIRA — COMEÇA A BROTAR. PORQUE NO UNIVERSO DE SADE, JULIETTE É A ÚNICA QUE SOBREVIVE: A QUE USA O QUE O MUNDO LHE FEZ PARA O DEVOLVER EM DOBRO, A QUE PERCEBE QUE, NUM SISTEMA DE PURA DOMINAÇÃO, A VIRTUDE É APENAS UM CONVITE AO MASSACRE. HIDEKO, NA MONTAGEM DE PARK, PASSA A SER ESSE TRAÇO LIVRE E IMPREVISÍVEL: ORA SERPENTE, ORA LÂMINA, ORA FANTASMA. A PERSONAGEM HISTÉRICA, ENTRE O PATÉTICO E O HERÓICO, TRANSFORMA-SE NAQUELE TERRITÓRIO SAGRADO QUE BATAILLE DESCREVERIA COMO GASTO PURO. UM CORPO QUE APRENDE A USAR A PRÓPRIA FERIDA COMO ARMA.

A REVIRAVOLTA NÃO É REDENTORA — É EXCESSO. É FUGA. É QUEIMADURA. A REVIRAVOLTA DA PERSONAGEM, E NÃO O(S) “PLOT-TWIST(S)” SALTITANTES DO FILME, DIGO. A CAVE DO TIO, COM AS SUAS PEÇAS PORNOGRÁFICAS, É FINALMENTE VIRADA CONTRA ELE, AOS OLHOS DO ESPECTADOR: O MUSEU DA DOMINAÇÃO PATRIARCAL TORNA-SE A SUA CÂMARA DE TORTURA PERFORMATIVA E EGOCÊNTRICA. E PARK FILMA TUDO ISTO COM UMA CERTEZA EXTRAORDINÁRIA: DE QUE O CINEMA — OU AS HISTÓRIAS, PRONTO (PORQUE O CINEMA, PELO MENOS ESTE, NÃO VAI LONGE QUE CHEGUE) — QUANDO DESPIDAS DE MORAL, SÃO MÁQUINAS DE PROFANAÇÃO. QUANDO AS DUAS MULHERES RUMAM AO MAR, ONDE EM GRANDE EXALTAÇÃO USAM E ABUSAM DE ALGUNS OBJECTOS SEXUAIS FAMILIARES DO PASSADO FORMATIVO DE HIDEKO. PERDÃO, DE JUSTINE. NÃO…, DE JULIETTE. ENFIM. NO SEU TÉRMINO, O FILME NÃO OFERECE SÓ UM FINAL FELIZ; OFERECE LIBERTAÇÃO.

O FILME É O QUE É. MAS UMA LEITURA MAIS LITERÁRIA, DO TÃO TEMIDO CONTEÚDO, NÃO DEIXOU DE ME SUSCITAR CURIOSIDADE AO REVISITÁ-LO ONTEM NUMA SESSÃO DO CINECLUBE DE POMBAL. GOSTEI MENOS DO FILME NESTA SEGUNDA VOLTA: PARECEU-ME O MENOS HITCHOCKIANO E MELODRAMÁTICO DO PARK, NOS BONS SENTIDOS DOS TERMOS. É MAIS UM FILME CARROSSEL ONDE AS REVIRAVOLTAS (DE ENREDO E AUDIOVISUAIS) SÃO MAIS MECANISMOS PARA MANTER OS ESPECTADORES ENTRETIDOS QUE OUTRA COISA. MAS PRONTO, FICA A NOTA POSITIVA PELA SOPA LITERÁRIA QUE NOS APRESENTA, COM SABOR A DE SADE. FIQUEI MUITO CURIOSO EM LER O ROMANCE DE ONDE FOI ADAPTADO O FILME. E, NAS PALAVRAS DE ANDRÉ BAZIN, ISSO É SINAL QUE ESTAMOS QUASE SEMPRE PERANTE BOM CINEMA. NÃO QUE CONCORDE COM ELE, MAS PRONTO. UMA NOTA POSITIVA FINAL TAMBÉM PARA A KIM MIN-HEE, A JUSTINETTE DO FILME. ACTRIZ QUE A CADA FILME ONDE ESTÁ QUE VOU VENDO, MAIS ME IMPRESSIONA.

Manuel Oliveira