VIVA O CINEMA (PORTUGUÊS)!

CINCO PENSAMENTOS SOBRE CINCO FILMES VISTOS EM SALA A SEMANA PASSADA

UMA SEMANA DE RETIRO MENTAL E ESPIRITUAL PODE SOAR A FUGA DO MUNDO, MAS HÁ VEZES EM QUE É NO ESCURO DE UMA SALA DE CINEMA QUE A CABEÇA SE ENDIREITA. A 31.ª EDIÇÃO DOS CAMINHOS DO CINEMA PORTUGUÊS, ABRIU-SE COMO UM PEQUENO TERRITÓRIO SAGRADO — NÃO DE INCENSOS NEM DE CANÇÕES TIBETANAS, MAS DAQUELA LUZ PROJECTADA EM TELA QUE NOS ACERTA DIRECTAMENTE NA ALMA. DIZEM QUE O FESTIVAL É UMA ESPÉCIE DE RESUMO DO CINEMA PORTUGUÊS DO ANO; NA VERDADE, É UM LABIRINTO, UM INVENTÁRIO DE PRESENÇAS E FANTASMAS, E TAMBÉM DE NOVIDADE. E ESTE ANO, DEPOIS DE 25 FILMES VISTOS EM SESSÕES DIÁRIAS, FICO COM UMA CERTEZA QUE DISPENSA MUITOS CÍNICOS: HÁ AQUI CINEMA. CINEMA A SÉRIO.

HÁ UM CERTO ALÍVIO EM CHEGAR AO FIM DESTA MARATONA E PERCEBER QUE MAIS DE METADE DAS OBRAS NÃO SÃO APENAS “RECOMENDÁVEIS”, MAS SÃO DAQUELES SOCALCOS QUE ECOAM. E NÃO, NÃO ESTOU A FALAR DE “VOZES SINGULARES” OU DE “VISÕES DE AUTOR” QUE OS PRESS-RELEASES ADORAM SERVIR COMO TAPAS CULTURAIS. FALO DE FILMES QUE EXISTEM SEM PRECISAREM DE CHAPÉUS DE CHUVA TEÓRICOS OU DE APLAUSOS AUTOMÁTICOS. SÃO BONS FILMES, PONTO FINAL, E ISSO É RARO E BASTA.

POR ISSO, E NUM EXERCÍCIO DE DESCONSTRUÇÃO DESSE PRECONCEITO TEIMOSO QUE MUITA GENTE AINDA GUARDA CONTRA O CINEMA PORTUGUÊS — UMA BIRRA ANTIGA, TRANSMITIDA DE GERAÇÃO EM GERAÇÃO COMO UM PROVÉRBIO MAL CONTADO — DECIDI PUXAR PELO PANO E DAR LUZ A CINCO DOS TÍTULOS QUE ME FICARAM COLADOS À PELE ESTA SEMANA. NÃO É EVANGELIZAÇÃO CINÉFILA (QUE NINGUÉM TEM PACIÊNCIA PARA ISSO), É SÓ UMA TENTATIVA DE GASTAR UM BOCADINHO A IDEIA DE QUE “POR CÁ NÃO SE FAZ NADA DE JEITO”.

ESTES CINCO FILMES SÃO A MINHA CONTRAPROVA: CINEMA QUE NÃO PRECISA DE DESCULPAS, DE MANUAIS, NEM DE EMBRULHOS INTERNACIONAIS PARA VALER. CINEMA QUE EXISTE COMO AS COISAS QUE MAIS PERDURAM: PORQUE SIM, PORQUE TEM DE SER, E PORQUE QUANDO A LUZ SE APAGA E O ECRÃ SE ACENDE, AINDA HÁ OBSTINAÇÃO SUFICIENTE NESTE PAÍS PARA NOS PÔR A VER, A SENTIR E A PENSAR.

O RISO E A FACA, DE PEDRO PINHO

O CLÁSSICO – AS MENINAS EXEMPLARES; DE JOÃO BOTELHO

AS MENINAS EXEMPLARES É DAQUELES FILMES QUE ENTRAM DE MANSINHO E ACABAM A REORGANIZAR OS MÓVEIS TODOS DA CABEÇA. ESPECIALMENTE VINDO DO REALIZADOR QUE VEM. A PREMISSA — ADULTOS A INTERPRETAR CRIANÇAS NUM MUNDO LITERÁRIO IMAGINADO COM RIGOR DE MINIATURA — PODIA TER CAÍDO NO EXERCÍCIO DE ESTILO, MAS NÃO: HÁ AQUI UMA ESPÉCIE DE PUNK SUAVE, UM GESTO DE INSURREIÇÃO REVESTIDO DE LAÇOS E PÓ-DE-ARROZ, QUE REMETE PARA UMA ATITUDE ANTIGA DO MAIOR MESTRE DO CINEMA PORTUGUÊS, MANOEL DE OLIVEIRA. AQUI O É CLÁSSICO ENTENDIDO NÃO COMO PEÇA DE MUSEU, MAS COMO MATÉRIA VIVA, MAL-CRIADA, MODERNÍSSIMA, COMO SE A INFÂNCIA FOSSE UM PALCO ONDE O RIDÍCULO E O SUBLIME DANÇAM DE MÃO DADA. VER ACTORES ADULTOS A FAZER DE CRIANÇAS É MAIS DO QUE UM DISFARCE: É UMA FORMA DE EXPOR O TEATRO PERMANENTE DA VIDA, A CRUELDADE E A DOÇURA, A IMPORTÂNCIA DAS PEQUENAS GRANDES GUERRAS DO CRESCER. A ADAPTAÇÃO LITERÁRIA TORNA-SE, ASSIM, UM CAMPO DE BATALHA ENTRE A MEMÓRIA E O PRESENTE; E O RESULTADO É UM FILME QUE CONSEGUE SER FIEL AO ESPÍRITO ORIGINAL ENQUANTO O VIRA DO AVESSO (OU TALVEZ NÃO VIRE ASSIM TANTO COMO POSSA PARECER AO ESPECTADOR MENOS ATENTO).

O CHATO – COMPLÔ; DE JOÃO MILLER GUERRA

COMPLÔ É CINEMA DO TEMPO EXPANDIDO. COM O IMPACTO DE UM PUNHO FECHADO ENTERRADO MUITO DEVAGAR. JOÃO MILLER GUERRA FILMA COM UMA PROXIMIDADE RARA, DAQUELAS QUE NÃO PEDEM LICENÇA — A CÂMARA COLA-SE A ROSTOS, A GESTOS, A SILÊNCIOS, E TRANSFORMA O DOCUMENTÁRIO NUM TERRITÓRIO BRUTO, QUASE TÁCTIL. A POLÍTICA E O COLONIALISMO SURGEM NÃO COMO TESES, MAS COMO UMA CAMADA MINERAL DA REALIDADE, UMA ARQUEOLOGIA DO PRESENTE QUE A LENTE VAI REVELANDO SEM PREGAR NADA A NINGUÉM, NEM NOS MOMENTOS ONDE A MANIFESTAÇÃO POPULAR APARECE NA TELA. LEMBRA, POR MOMENTOS, O TRABALHO DE VERENA PARAVEL E LUCIEN CASTAING-TAYLOR EM CANIBA: ESSA MANEIRA DE OLHAR O MUNDO COMO CORPO VULNERÁVEL, FERIDO, VIVO.

O PRETENSIOSO – PRIMEIRA PESSOA DO PLURAL; DE SANDRO AGUILAR

PRIMEIRA PESSOA DO PLURAL É DAQUELES FILMES QUE ENTRA LOGO A MATAR: UM BALÉ DE NEUROSES, DE GESTOS COMPULSIVOS E CORPOS QUE FALAM MAIS DO QUE AS PALAVRAS, COMO SE SANDRO AGUILAR TENTASSE, ELE TAMBÉM, ESCREVER COM O CORPO TODO, DOS ACTORES E DA PRÓPRIA CÂMARA — UM ARCO DISPARADO PARA O NERVO NU DA IMAGEM. CHAMAREM-LHE “PRETENSIOSO” É FÁCIL; DIFÍCIL É AGUENTAR O SEU MUNDO FEITO DE EXAGEROS, DE BUTOH DOMÉSTICO, DE SILÊNCIOS QUE GRITAM E DE UMA CASA-LABIRINTO A BRILHAR COMO RESNAIS EM ACESSO DE FEBRE. AGUILAR PEGA NUM FIO NARRATIVO MÍNIMO — UMA FAMÍLIA, UMA VACINA, UM POSSÍVEL DELÍRIO — E TORCE-O ATÉ FAZER DELE UMA LINGUAGEM PRÓPRIA, UMA LITURGIA DE CARETAS, TREJEITOS E MÁSCARAS QUE EXPÕEM O CRATERAR DA VIDA BURGUESA COMO SE FOSSE UM RITUAL DE DESINTEGRAÇÃO. ENTRE DELÍRIOS VISUAIS, SAMURAIS DE SUBSOLO, FANTASMAS GIALLO E CORES QUE LAMBUZAM AS SUPERFÍCIES, O FILME ENTREGA-SE A UMA CORAGEM TEIMOSA: A DE NÃO DAR NADA À MÃO DO ESPECTADOR. E NO FINAL, QUANDO ESTES CORPOS ARRASADOS LARGAM AS COREOGRAFIAS E ESTENDEM A MÃO UNS AOS OUTROS — SEM MAGIA, SEM ARTIFÍCIO, APENAS DESEJO E FRAGILIDADE — PERCEBEMOS QUE O PRETENSIOSO ERA, NA VERDADE, UM ACTO DE AMOR. UM GESTO DE VIDA E DE LIBERDADE. E DOS BRAVOS.

O HISTORIADOR – LA DURMIENTE; DE MARIA INÊS GONÇALVES

LA DURMIENTE É UM DAQUELES FILMES QUE PERCEBEM, MELHOR DO QUE MUITOS LIVROS, QUE A HISTÓRIA DE PORTUGAL — TODA ELA — É TAMBÉM UM GRANDE JOGO DE FAZ-DE-CONTA, UM TEATRO DE CRIANÇAS MAL DISFARÇADAS DE ADULTOS. MAIS AINDA É O GESTO DE CONTAR E RECONTAR ESTA HISTÓRIA. MARIA INÊS GONÇALVES ENCARA O CINEMA COMO REESCRITA — NÃO A RECONSTRUÇÃO SOLENE DO PASSADO, MAS A SUA INFÂNCIA RECUPERADA: A HISTÓRIA COMO BRINCADEIRA, COMO JOGO SERÍSSIMO DE QUEM AINDA NÃO SABE MAS FAZ DE CONTA QUE SABE, PORQUE O PRAZER BÁSICO DE INVENTAR É FORTE. E É JUSTAMENTE NESSE GESTO DE REINVENÇÃO LÚDICA QUE O FILME GANHA UMA FORÇA DESARMANTE: AS FIGURAS HISTÓRICAS, FEITAS CRIANÇAS OU CRIANÇAS FEITAS FIGURAS, ANDAM POR ALI COMO QUEM BRINCA ÀS NAÇÕES, ÀS BATALHAS, ÀS GLÓRIAS E ÀS DORES, E O CINEMA TORNA-SE O PALCO ONDE A MEMÓRIA SE DESFAZ E RECOMEÇA. LA DURMIENTE É ASSIM UM ACTO DE DESFRUTO PENSADO — UM FILME QUE SABE QUE SÓ REESCREVEMOS A HISTÓRIA QUANDO ACEITAMOS QUE, NO FUNDO, SOMOS TODOS MIÚDOS A INVENTAR MUNDOS PARA CONTINUAR A JOGAR. E HÁ MUITAS VERDADES A SER REVELADAS NESSE MESMO GESTO.

O ESTRANHO – BAÍA DOS TIGRES; DE CARLOS CONCEIÇÃO

BAÍA DOS TIGRES É UM FILME QUE NOS AGARRA PELO BRAÇO E NOS LEVA NUMA VIAGEM ATRIBULADA, ONDE O TEMPO, O LUGAR E A HISTÓRIA SE MISTURAM NUMA COREOGRAFIA DE GÉNERO CINEMATOGRÁFICO — DO SCI-FI AO TERROR — QUE É AO MESMO TEMPO FASCINANTE E DESORIENTADORA. CARLOS CONCEIÇÃO USA OS GESTOS GRANDIOSOS DO CINEMA DE GÉNERO COMO LINGUAGEM, DESLOCANDO-NOS PARA UM ESPAÇO ONDE O COLONIALISMO PORTUGUÊS SE ENTRELAÇA COM OUTRAS HISTÓRIAS COLONIAIS, DO VIETNAME AO PASSADO MAIS PRÓXIMO, CRIANDO UMA TOPOGRAFIA EM QUE O TERRITÓRIO E A MEMÓRIA SE CONFRONTAM. ENTRE IMAGENS QUE NOS EMBALAM E OUTRAS QUE NOS ARRANHAM, BAÍA DOS TIGRES CONSEGUE SER AO MESMO TEMPO ESTRANHO, DESLOCADO, E INESQUECÍVEL — UM FILME ONDE O CINEMA SE TORNOU NAVEGADOR, E TALVEZ ATÉ GLADIADOR, DAS MONSTRUOSIDADES DA MEMÓRIA.

GOSTARIA AINDA DE ACENDER UMA ÚLTIMA VELA PARA OUTROS FILMES QUE, POR FALTA DE ESPAÇO E NÃO DE MERECIMENTO, FICAM FORA DESTE ARTIGO. PÉROLAS QUE CONTINUAM A BRILHAR NA MINHA MEMÓRIA: ARGUMENTS IN FAVOUR OF LOVE, DE GABRIEL ABRANTES; SOB A CHAMA DA CANDEIA, DE ANDRÉ GIL MATA; A MEMÓRIA DO CHEIRO DAS COISAS, DE ANTÓNIO FERREIRA; E DUAS VEZES JOÃO LIBERADA, DE PAULA TOMÁS MARQUES. FILMES BELÍSSIMOS, CADA UM COM A SUA PRÓPRIA RESPIRAÇÃO.

E O MAIS IRÓNICO NISTO TUDO É QUE A FESTA NÃO ACABA AQUI. ESTE ANO, AS SALAS PORTUGUESAS AINDA ME DERAM MUITO MAIS: A SAVANA E A MONTANHA, DE PAULO CARNEIRO; O RISO E A FACA, DE PEDRO PINHO; CLARIDADE, DE MARIANA SANTANA; E HANAMI, DE DENISE FERNANDES — FILMES QUE, COM UM POUCO DE SORTE, AINDA SE CONSEGUEM APANHAR POR AÍ.

DIANTE DISTO, NÃO HÁ DECERTO DESCULPA POSSÍVEL PARA OS ARAUTOS DO FIM DO CINEMA — ESSA GENTE QUE, ENTRE UM SUSPIRO E UM CLIQUE, PROCLAMA A MORTE DO QUE NÃO SE DIGNOU A VER. TALVEZ O SEGREDO ESTEJA SIMPLESMENTE EM OLHAR PARA O QUE SE FAZ CÁ, EM DEIXAR CAIR O CINISMO BARATO E EM VOLTAR A ESSA CASA SAGRADA QUE SÃO AS SALAS DE CINEMA, ONDE O MUNDO AINDA SE MOVE E AINDA NOS MOVE. PORQUE O CINEMA, QUANDO É VISTO, É MESMO ISSO: UM TOTEM DE AFECÇÕES.

Manuel Oliveira