120 DIAS DE CINEMA

SOBRE JUVENTUDE, DE WANG BING

JUVENTUDE É UM FILME SOBRE O TRABALHO, MAS NÃO UM FILME DE TRABALHO. É UMA LENTE SOBRE A VIDA – NÃO A GRANDE VIDA, MAS A VIDA QUE É POSSÍVEL.

A TRILOGIA (NA VERDADE, UM FILME EM PARTES) JUVENTUDE DE WANG BING – PRIMAVERA, TEMPOS DIFÍCEIS, REGRESSO A CASA – É UM COLOSSO DE 10 HORAS QUE SE RECUSA A CONSTRUIR UMA NARRATIVA CLÁSSICA DENTRO DO QUE ASSUMIDAMENTE É: UM DOCUMENTÁRIO. MESMO QUE NUM FORMATO ALTAMENTE CONSTRUÍDO DE BLOCOS DE CERCA DE 20 MINUTOS, INSISTE EM RECUSAR O DRAMAS E ARANHOLAS NARRATIVAS EM FAVOR DA OBSERVAÇÃO. É CINEMA QUE ASSISTE, QUE PERMANECE, QUE INSISTE. EM DORMITÓRIOS SOBRELOTADOS E NAS OFICINAS APERTADAS DE ZHILI, A CÂMARA CAPTA ADOLESCENTES A COSTURAR, DISCUTIR SALÁRIOS, APAIXONAR-SE, E A REPETIR ESTES GESTOS VEZES E VEZES SEM CONTA. A IMAGEM NÃO COMOVE: DEIXA-NOS ESTAR COM. UM RETRATO ESTENDIDO, ONDE O TEMPO É A SUA FERRAMENTA E O SEU OBJETO PRINCIPAL. ABAIXO DEIXO NOVE PENSAMENTOS SOBRE A NOVA OBRA DO GIGANTE DO CINEMA CONTEMPORÂNEO, QUE TIVE A OPORTUNIDADE DE VER NESTE FIM-DE-SEMANA.

1. NUMA CHINA SEM ESTADO À VISTA, A INDÚSTRIA PRIVADA APARECE COMO SISTEMA TOTAL: NÃO HÁ DISTINÇÃO ENTRE TRABALHAR E VIVER

A OFICINA – GERIDA POR FAMÍLIAS NUM MAR DE OUTRAS PEQUENAS EMPRESAS (SEGUNDO O FILME, CERCA DE 20 MIL) – É ONDE O CANSAÇO TOMA FORMA. OS TECTOS BAIXOS, OS NEONS, O BARULHO CONTÍNUO DAS MÁQUINAS: É NESSE RUÍDO QUE SE VIVE. E VIVE-SE POUCO. OU VIVE-SE MUITO, SE ENTENDERMOS VIDA COMO PERSISTÊNCIA. AS CONVERSAS, BANAIS À SUPERFÍCIE, ESTÃO CARREGADAS DE AUSÊNCIA: FALAM-SE SAUDADES, AMBIÇÕES VAGAS, CÁLCULOS SALARIAIS, PEQUENAS VITÓRIAS – E MUITO DAQUILO QUE NÃO SABE NOMEAR.

2. OS FILMES DE WANG NÃO EXPLICAM: DÃO A VER. NÃO PEDEM ANÁLISE: PEDEM ATENÇÃO.

AO CONTRÁRIO DA TRADIÇÃO DOCUMENTAL QUE DENUNCIA OU EDITA PARA PERSUADIR, WANG BING OBSERVA. REPETE. ESTICA. FILMA O INTERVALO, O SILÊNCIO, O GESTO. NÃO DRAMATIZA, MAS DIGNIFICA. CADA PLANO É UM COMPROMISSO. NÃO SE TRATA da construção de um statement ou “passar uma mensagem” – MAS DE RECUSAR A INDIFERENÇA.

3. A COMPARAÇÃO ENTRE SECTOR ESTATAL E PRIVADO NÃO ESTÁ NO CENTRO, MAS FLUTUA NO FUNDO.

NUM MURMÚRIO DE CONVERSA OU NO OLHAR DE UM TRABALHADOR MAIS VELHO, SURGEM ECOS DO TEMPO DAS FÁBRICAS ESTATAIS: ONDE HAVIA HABITAÇÃO, SAÚDE, COMUNIDADE. NÃO SE TRATA DE NOSTALGIA – WANG BING CONHECE BEM OS ESQUELETOS NO ARMÁRIO DO REGIME CHINÊS. MAS HÁ UMA AUSÊNCIA QUE SE NOTA. O QUE FALTA NÃO É SÓ ESTRUTURA – É SOLIDARIEDADE. E ISSO O FILME CAPTA. ISSO É VISÍVEL NA CRISE POLICIAL EM TEMPOS DIFÍCEIS, MAS PRINCIPALMENTE NO ÚLTIMO FILME, ONDE A PRESENÇA DO GOVERNO VOLTA A TER LUGAR NA CHINA DO FILME, ATÉ MESMO ICONOGRAFICAMENTE.

4. NÃO SÃO FILMES DE DESESPERO – SÃO FILMES DE ESPERANÇA.

NOS DORMITÓRIOS, NOS CIGARROS PARTILHADOS, NAS REFEIÇÕES FEITAS EM CONJUNTO, NASCE OUTRA COISA. UMA COMUNIDADE FRÁGIL, INSTÁVEL – MAS REAL. NÃO HÁ UTOPIA, NEM REDENÇÃO. HÁ COMPANHEIRISMO. PEQUENOS GESTOS QUE NÃO MUDAM O SISTEMA, MAS SÃO TAMBÉM PARTE DELE. E É NISSO QUE ESTÁ A BELEZA DO GESTO DE WANG: OLHAR COM EMPATIA, MESMO QUANDO PARECE NÃO HAVER SAÍDA.

5. EM REGRESSO A CASA, O MOVIMENTO É UM EXALAR.

NÃO SÓ EM REGRESSO A CASA, MAS EM TODOS OS FILMES (NOMEADAMENTE NO É COMO TEMPOS DIFÍCEIS E PRIMAVERA AMBOS TERMINAM) ALGUNS TRABALHADORES VOLTAM ÀS SUAS ALDEIAS. NÃO SE TRATA DE UM FINAL FELIZ – É UM MOVIMENTO NECESSÁRIO. NÃO É REGRESSAR AO PASSADO, NEM RECUSAR O PRESENTE. É PROCURAR, TALVEZ, ESPAÇO PARA RESPIRAR. NÃO SE TRATA DE VOLTAR PARA TRÁS, MAS DE AFIRMAR O REGRESSO COMO ESCOLHA – E, NESSE GESTO, (RE)ENCONTRAR UMA IDENTIDADE.

6. NO MEIO DE TANTA CHINA, SURGE O EGOÍSTA PENSAMENTO: ISTO É TAMBÉM SOBRE NÓS.

NÃO PORQUE TUDO SEJA IGUAL, MAS PORQUE A PRECARIEDADE, A LÓGICA DA RENTABILIDADE, A DISSOLUÇÃO DOS DIREITOS LABORAIS SÃO REALIDADES TAMBÉM OCIDENTAIS. A DIFERENÇA É DE ESCALA – NÃO DE ESSÊNCIA. OLHEMOS PARA A “CRISE DE EMIGRAÇÃO EM PORTUGAL” E COMO NOS MANDAM OLHAR PARA O QUE ACONTECE NAS ESTUFAS DA COSTA VICENTINA COMO SENDO EXEMPLO DE NÃO SE SABE MUITO BEM O QUÊ… E PERCEBEMOS QUE PARA SE QUERER MUDAR E QUERER VIVER, CONDESCENDÊNCIA E MISERABILISMO NÃO BASTAM. QUANTO MUITO, SÓ ESTORVAM. HÁ UMA URGÊNCIA DE OUVIR E VER AS PESSOAS.

7. ZHILI É EXCECIONAL, MAS É TAMBÉM UM AVISO.

UM ESPAÇO ONDE O ESTADO ESTÁ AUSENTE, E ONDE A LIBERDADE EMPRESARIAL É TOTAL. LIBERDADE QUE OPRIME, MAS DESTA VEZ POR FALTA DE ESTRUTURA. MAS É JUSTAMENTE AÍ QUE WANG BING VÊ POSSIBILIDADE, OU, PELO MENOS, MUDANÇA. A SUA ESPERANÇA NÃO ESTÁ NO REGRESSO A UM PASSADO IDEALIZADO, NEM NA EXALTAÇÃO DE UMA NOVA ECONOMIA LIVRE. A ESPERANÇA ESTÁ NA POSSIBILIDADE – CONCRETA, AINDA QUE MÍNIMA – DE UMA NOVA CONSTRUÇÃO POR PARTE DESTAS PESSOAS APARENTEMENTE SEM FUTURO. NÃO DO SISTEMA, MAS DE FORMAS DE VIVER DENTRO DELE. ESPERANÇA NUM BROTAR DE NOVAS FELICIDADES. É ESSA A ÚLTIMA FRONTEIRA DO MUNDO PÓS-CAPITALISTA, QUE CHEGOU OFICIALMENTE À CHINA. DO MESMO MODO QUE OS TRABALHADORES TRAZEM OS SEUS RENDIMENTOS PARA AS SUAS ALDEIAS NATAIS, HÁ EM JUVENTUDE A IDEIA DE QUE TRAZEM TAMBÉM ALGO MAIS, E MUITO MAIS PROFUNDO, E NOVO, CONSIGO.

8. JUVENTUDE É MAIS QUE UM DOCUMENTÁRIO – É UMA ELEGIA. UMA FORMA DE RESISTIR À INDIFERENÇA COM A FIDELIDADE DO CINEMA

WANG BING NÃO PROCURA SLOGANS. NÃO OFERECE RESOLUÇÃO. FILMA COMO QUEM CUIDA. MONTA COMO QUEM CUIDA. E, AO RECUSAR DESVIAR O FOCO DO ESPECTADOR, CRIA CINEMA COMO FORMA DE ATENÇÃO. DE MEMÓRIA. E ISSO É MAIS REVOLUCIONÁRIO, É MAIS CINEMA, QUE PALAVRAS E IMAGENS OCAS DE UMA TECNICIDADE DE JEITOS E FEITIOS. EM JUVENTUDE, EXISTE MESMO GENTE, NO QUE PODEMOS CHAMAR DE GRITO DE HUMANIDADE POR PARTE DO REALIZADOR

9. NÃO É PRECISO UNIVERSALIZAR: BASTA OLHAR.

WANG BING FILMA A CHINA. MAS AO FILMAR OS TRABALHADORES DE ZHILI, FILMA O MUNDO. PORQUE FILMAR O TRABALHO – HOJE, NESTE MILÉNIO – É FILMAR O CENTRO DA VIDA HUMANA. E POUCOS O FAZEM COM TANTO CUIDADO, COM TANTA PACIÊNCIA, COM TANTA VERDADE, COM TANTA DIGNIDADE. E ESSE É O INGREDIENTE SECRETO DA FOTOGENIA, É O SEGREDO DO CINEMA QUE REALMENTE VALE A PENA VER E FAZER.

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PARA QUEM MORA NA ZONA CENTRO COMO EU, JUVENTUDE VAI SER EXIBIDO MAIS UMA VEZ A COMEÇAR NA PRÓXIMA SEGUNDA-FEIRA DIA 26 DE MAIO NA CASA DO CINEMA DE COIMBRA. PODE SER UMA DAS ÚLTIMAS OPORTUNIDADES DE VER O FILME POR ESTAS BANDAS, POR ISSO OS INTERESSADOS QUE APROVEITEM E ESTEJAM ATENTOS. O FILME ESTÁ AGORA A SER DISTRIBUÍDO PELA MIDAS FILMES.