UM AGOURO?

SOBRE GLÓRIA, DE MANUELA VIEGAS

TAL COMO A DEGRADAÇÃO E O DEFINHAR GENERALIZADO QUE RETRATA, GLÓRIA DESENROLA-SE NUM RITMO CONTEMPLATIVO, DE UMA BELEZA CRUA, QUE CAPTA A SENSAÇÃO DE DESAPARECIMENTO DE UMA PEQUENA CIDADE PORTUGUESA — E, COM ELA, O DESMORONAR INEVITÁVEL DAS PESSOAS E RELAÇÕES QUE LÁ VÃO FICANDO. O DESCONFORTO CRESCE A CADA CENA, APERTANDO AS TRIPAS DO ESPECTADOR À MEDIDA QUE O FILME AVANÇA, NUM DESENCADEAR DE CENAS QUE PARECEM TERMINAR REPENTINAMENTE, SEM GRANDES EXPLICAÇÕES.

A VIOLÊNCIA RARAMENTE SE VÊ, MAS A SUA AUSÊNCIA NO ECRÃ TORNA TUDO AINDA MAIS INQUIETANTE. A CÂMARA DE MANUELA VIEGAS NÃO SEGUE OS CONFLITOS ATÉ AO FIM. DEIXA-OS POR RESOLVER, OU, PELO MENOS, DEIXA A SUA SOLUÇÃO FORA DO NOSSO ALCANCE, TORNANDO CADA PORTA QUE SE FECHA, CADA DESPEDIDA ABRUPTA, UM PRESSÁGIO DE ALGO PRESTES A DESMORONAR-SE. PODEMOS ALEGAR QUE TUDO ISTO CONTRIBUI PARA UMA SENSAÇÃO DE ALGO QUE DEFINHA QUE O FILME TENTA REPRESENTAR, COM O SEU QUÊ DE PROFÉTICO NO QUE TOCA À EXPERIÊNCIA PORTUGUESA NA PERIFERIA. NO ENTANTO, MAIS DO QUE UM AGOURO, TRATA-SE EM GLÓRIA DA BELEZA DO DESAPARECIMENTO, DA BELEZA DO FIM. DE COMO UMA INTERRUPÇÃO – DEFINITIVA OU DE INTERVALO – PODE AMPLIFICAR, SENSORIALMENTE, A EXPERIÊNCIA DE UMA HISTÓRIA, DE UMA PERFORMANCE, DE UMA IMAGEM, DA ARTE.

COM OS ADULTOS EM CONFLITO PERMANENTE NO FILME, AS CRIANÇAS VIVEM NO ABANDONO, SEJA ELE EMOCIONAL OU EXISTENCIAL. PARA ELAS, ESSA SOLIDÃO NÃO É APENAS UMA ESCOLHA NARRATIVA, É UMA REALIDADE. SEM DIREÇÃO NEM AMPARO, APRENDEM A MANIPULAR, A DESAFIAR, A AGIR POR INSTINTO. SÃO LIVRES, NO SENTIDO MAIS TRÁGICO DA PALAVRA. LIVRES POR PARADOXALMENTE CRESCEREM NUM VÁCUO, ENTREGUES A SI MESMAS, SEM QUALQUER PROMESSA DE FUTURO.

A DESINTEGRAÇÃO DAS FAMÍLIAS É EVIDENTE. NUM MOMENTO, DOIS IRMÃOS PARTILHAM UM CIGARRO; NO SEGUINTE, TENTAM MATAR-SE. NESTA SUA LIBERDADE SÃO VISTAS PELOS MAIS VELHOS COMO PEÇAS DESCARTÁVEIS NOS JOGOS CRUÉIS DA VIDA — SÃO USADAS, TRAÍDAS E ABANDONADAS SISTEMATICAMENTE.

ENQUANTO ISSO, O COMBOIO ECOA AO LONGE A ANUNCIAR A CHEGADA DO PROGRESSO. EM BREVE, NADA RESTARÁ DAQUELE LUGAR. APENAS FRAGMENTOS. MEMÓRIAS. CINEMA.

FOLHA DE SALA NR. 73 DO CINECLUBE DE POMBAL, 19/03/2025