CORPO HUMANO #1

MÃOS EM PHOTOMATON & VOX, DE HERBERTO HELDER

NESTE DIA DA POESIA, TRANSFIGURAÇÕES POÉTICAS EM PROSA, POR UM DOS NOSSOS MAIORES.

EMBAIXO, TRANSCRIÇÃO DO CAPÍTULO (OUTRA) EM PHOTOMATON & VOX.

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Nicolas de Largillière, ESTUDO DAS MÃOS (1715)

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(OUTRA)

OUTRA MÃO COMEÇOU A MULTIPLICAR-SE. GRANDE MÃO PESADA E GRAVE, MOROSA, DEIXANDO PELOS CANTOS AS SUAS NINHADAS. E AS CRIAS DESENVOLVIAM-SE DEPRESSA, ENTRAVAM NUMA PUBERDADE OFEGANTE E, ERGUIDAS NA LUZ QUE A ADOLESCÊNCIA DIMANA DO SEU PRÓPRIO TORMENTO E GLÓRIA, TINHAM ELAS POR SUA VEZ NOVAS NINHADAS. COMO TUDO SE PASSAVA NOS ARRABALDES, E AS PESSOAS COSTUMAM RECUAR OS OLHOS DIANTE DA FOSFORESCÊNCIA JUVENIL, E TAMBÉM PORQUE NUNCA SE VIRAM MULTIPLICAÇÕES DE MÃOS INDEPENDENTES, A CIDADE FICOU EM POUCO TEMPO CERCADA POR MILHARES DE MÃOS. NOCTÂMBULOS, BÊBADOS, VELHOS AFASTADOS DO RUÍDO CENTRAL, MULHERES QUE VOLTAVAM TARDE DAS FÁBRICAS – APARECIAM ESTRANGULADOS NOS FINS DE RUA DE SUBÚRBIONA ÚLTIMA PARAGEM DOS AUTOCARROS. NÃO HAVIA IMPRESSÕES DIGITAIS NOS PESCOÇOS. EM CIMA, OS ROSTOS EXIBIAM APENAS A SUA FECHADA E FRIA PERPLEXIDADE. MANHÃ CEDO, UM OPERÁRIO VIU NO METROPOLITANO UMA LONGA MÃO EM CIMA DE UM BANCO. PEGOU-LHE LOGO, VIRANDO-SE PARA AS PESSOAS: QUEM SE ESQUECEU AQUI DESTA MÃO? MAS ELA ESCAPOU-SE-LHE DA PONTA DOS DEDOS E SALTOU-LHE AO PESCOÇO. ESTRANGULOU-O ALI MESMO. NA PARAGEM SEGUINTE, DIANTE DA SUSPENSÃO DE TODOS, A MÃO APEOU-SE E DESAPARECEU. JÁ VIRAM CARACÓIS NOS MUROS, LAGARTIXAS? HAVIA MÃOS SUBINDO PELAS PAREDES. OU ENTÃO PARADAS, COM DOIS DEDOS ATENTOS LEVANTADOS, UM MODO DE ESTAR OLHANDO. MÃOS PENDURAVAM-SE NOS CANDEEIROS DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA, METIAM-SE NAS ALGIBEIRAS DOS SOBRETUDOS, INTERVINHAM COM SALTOS INTEMPESTIVOS NAS CONFERÊNCIAS, SUBIAM AOS PALCOS DOS TEATROS. OS AMANTES TINHAM MEDO DE IR PARA A CAMA. ÀS VEZES APARECIAM MÃOS VICIOSAS QUE SE INSERIAM OU FICAVAM A OLHAR A UM CANTO DO QUARTO. BRILHAVAM NA ESCURIDÃO. UM DIA PUBLICOU-SE NA CIDADE UM NOVO JORNAL. CHAMAVA-SE A MÃO. ERA REDIGIDO, IMPRESSO, DISTRIBUÍDO POR ESSAS MÃOS SEM GENTE. OS TEMAS DOS ARTIGOS E NOTÍCIAS ERAM TRATADOS DE UM PONTO DE VISTA MANUAL, E CONTINHAM DESCRIÇÕES DE CRIMES HORRENDOS E AMEAÇAS DE MORTE. O QUE NÃO PODEM FAZER MÃOS QUANDO LIBERTAS DE CORPO? ATÉ VOAR, SUPÕE-SE. E SUPÕE-SE BEM, PORQUE NUMA TARDE ALTA DE MAIO PASSOU SOBRE A POPULAÇÃO UMA REVOADA DE MÃOS. ALGUÉM DISPAROU UM TIRO DE REVÓLVER E, REALMENTE, CAIU-LHE AOS PÉS UMA GRANDE MÃO ESFACELADA AINDA PALPITANDO: QUER DIZER: PALPITANDO DO SEU VOO CORTADO E DA MORTE MUITO PRÓXIMA. NESSE MESMO DIA AS MÃOS DECLARARAM GEURRA AOS HOMENS. O EXTERMÍNIO FOI FULGURANTE. NUMA ÚNICA SEMANA MORREU TODA A GENTE DA CIDADE. QUE É AGORA HABITADA APENAS POR MÃOS, CUJO ESTILO DE VIDA NÃO PODE SER CONSIDERADO EM RELAÇÃO COM O ESTILO DAS PESSOAS. COMPREENDE-SE UMA VIDA INTEIRAMENTE MANUAL? UM PENSAMENTO MANUAL? OS HOMENS MORRERAM SEM COMPREENDER NADA. QUEM ESCREVE ESTE TEXTO É UMA DAS RECENTES HABITANTES DA CIDADE, UMA DAS TRIUNFADORAS DOS HOMENS. EU, ESTA MÃO.

PP. 51-53; EDIÇÃO PORTO EDITORA, ABRIL 2015